Análise Blackwood Crossing

Blackwood Crossing é mais um jogo onde a jogabilidade fica um pouco de lado e somos imersos numa narrativa que trata de assuntos mais maduros.

Alguns temas são difíceis de abordar em obras artísticas. Mesmo aqui na vida real, no convívio que temos com família e amigos, assuntos negativos não são conversa habitual e certas palavras são tabu. É bom ver desenvolvedoras discutindo temas ingratos porque a gente percebe que a decisão de tocar em questões incômodas mostra um amadurecimento da indústria em geral e do público, e é quando isso acontece que existe a chance de uma obra prima ver a luz do dia.

Blackwood Crossing, lançado no último dia 4 de abril, é um jogo corajoso. Mais que um jogo ele é uma fábula soturna. Se eu puder resumir de maneira simples, Blackwood Crossing é uma mistura de Gone Home e Life is Strange e apesar de curto, o título consegue transmitir sua mensagem mesmo em suas falhas.

Crazy Train

Scarlet tem por volta de 16 anos. Ela acorda e ouve seu irmão chamar em uma das cabines do trem em que estão viajando. Finn é mais novo, deve ter 10 ou 11 anos. Ela se levanta, olha em volta e anda pelo corredor seguindo a voz dele. Ao se encontrarem, eles correm juntos pelos vagões e subitamente estamos de volta ao sonho. Nesse trem, agora as pessoas usam máscaras. Scarlet as reconhece mas não vê seus rostos que aparecem cobertos artesanalmente por papel, fita, barbante e tinta colorida como se não fossem si mesmos, apenas aquilo que representam: mãe, pai, avós, professora. Durante o jogo, só o que Scarlet pode fazer é andar e manipular alguns objetos. Finn a guia pelos vagões e ela entende mais sobre o que está acontecendo à medida em que escuta pedaços de diálogos entre as pessoas que ocupam o sonho. Cada diálogo conectado revela mais sobre o que aconteceu com os irmãos.

Assim como em Gone Home, o objetivo de Scarlet (e do jogador) é entender o que está acontecendo e desembrulhar a história inteira. No início, as peças do quebra-cabeças são diálogos soltos que Scarlet irá conectar para formar uma conversa e poder apreender seu contexto. Lentamente, apenas escutando as conversas, aprendemos que a família vive um drama – exatamente como uma criança faria. A estratégia de nos apresentar uma história de maneira indireta é bastante satisfatória e a exposição nunca é direta demais, mesmo com o custo de deixar o jogador perdido de vez em quando, a maioria dos acontecimentos no trem – mesmo os mais absurdos – conseguem nos apontar para uma direção correta sem nos pegar pela mão.

All the Young Girls Love Alice

Se você jogou um dos títulos que usei como referência, vai notar que Blackwood Crossing é bem mais curto que Life is Strange, que é contado em vários capítulos e mais linear do que Gone Home, que apesar de se passar apenas em uma casa, é possível acessar todos os cômodos, enquanto que aqui nesse jogo avançamos conforme resolvemos os puzzles. O que destaca Blackwood Crossing dos outros títulos é sua natureza onírica com muita influência da obra máxima de Lewis Caroll – Alice no País das Maravilhas. Jardins erguem-se do vazio, fogueiras surgem no assoalho dos vagões, objetos ganham vida. Tudo isso acontece depois que Scarlet encontra um personagem específico que serve de guia pra protagonista.

O estilo artístico do jogo transmite bem a transição entre realidade e absurdo conforme avançamos,  tanto nas partes lúdicas em que Scarlet e Finn desenham e brincam com bonecos de papel até os trechos em que o jogo expõe o drama pelo qual a família deles passa.

All Nightmare Long

A direção do jogo colocou bastante esforço pra fazer o jogador se sentir angustiado conforme descobre a história. Blackwood Crossing avança e brinca com a nossa curiosidade ao mesmo tempo que não dá respostas claras – eu terminei o jogo sem saber a identidade de um personagem mascarado – mas não  há dúvida quanto ao drama em si. A família vive um momento escuro que está muito bem representado em ambientes lúgubres e pela movimentação lenta de Scarlet que, por mais que queira, não consegue acelerar o sonho pra que ele acabe.

Já que o assunto é pesadelo, algumas escolhas de design do jogo parecem estar ali exclusivamente pra tornar o avanço do jogador penoso. Impedir que Scarlet corra, deixa o jogo entediante, às vezes. Em determinada área, o mesmo puzzle de conectar falas pra montar os diálogos dos personagens que vimos no início do jogo acontece num jardim de tamanho razoável e porque Scarlet não pode correr, temos que seguir lentamente através do cenário pra ligar o personagem que está sentado no início do jardim com aquele que está na outra ponta. Some isso à sua vontade de desenrolar a trama e temos um trecho que não precisava ser tão cansativo. Em outro momento, uma cena de suspense acontece à nossa frente, a trilha sonora do jogo transmite urgência mas Scarlet apenas anda calmamente pelo ambiente até conseguir os itens pra avançar no puzzle. Incoerente.

No fim das contas, por ser um jogo linear e curto, Blackwood Crossing consegue condensar e maximizar toda sua experiência de maneira que você não irá se sentir desconectado dos personagens ao fim da trama mesmo com essas escolhas equivocadas. O drama de Scarlet e Finn acontece todo durante as horas de uma viagem de trem e ao final, tanto o jogador como Scarlet aprendem que certas experiências não precisam ter a duração de uma vida toda.

P.S.: Os vagões do trem tem pequenas homenagens a ótimos filmes. Vale a pena procurar por elas.

Diego Matias
Além dos reviews, escrevo no Riffs & Solos e faço vídeos com meu irmão no canal SuperContra. Passa lá!