Análise Manifold Garden (PS4)

Manifold Garden é um quebra-cabeças de exploração em primeira pessoa interessante que usa gravidade e perspectiva para criar um mundo surreal e desafiador.

William Chyr, a mente criativa por trás de Manifold Garden, é uma figura com um histórico de escolhas profissionais no mínimo interessantes.

Enquanto ainda cursava Física e Economia na Universidade de Chicago ele foi trabalhar na Itália em um acelerador de partículas linear no Instituto Nacional de Física Nuclear, mas ao terminar a graduação optou por não continuar na carreira e passou os próximos anos trabalhando com Arte de Instalação.

O trabalho consistia na montagem de enormes peças compostas por balões para museus de arte contemporânea e exibições comissionadas de ciências. Após passar quatro anos trabalhando com isso o apelido de o “cara do balão” passou a incomodar, e ele resolveu buscar novos projetos.

Como sabia o básico de programação, e por ser interessado em design e arquitetura, William resolveu que a sua próxima realização artística seria um game que uniria os conhecimentos sobre física adquiridos na graduação, a arquitetura impossível e surreal retratadas nas obras de M.C. Escher, da qual era fã, e o design colorido e minimalista dos seus próprios projetos com balões.

O jogo é muito inspirado pela obra do artista M.C. Escher

E após sete anos em desenvolvimento Manifold Garden chegou em 2020 aos consoles, após estar disponível para computadores desde 2019. O jogo foi desenvolvido e publicado pelo William Chyr Studios e está atualmente disponível para PlayStation 4, Xbox One, Xbox One X|S, Nintendo Switch e para computadores em diversas lojas como Epic Games Store, Steam, Itch.io e Apple Arcade.

Mas do que se trata Manifold Garden?

Utilizando uma perspectiva em primeira pessoa o jogador precisa resolver quebra-cabeças utilizando conceitos básicos de gravidade e manipulação de itens enquanto explora um mundo cheio de estruturas que se repetem infinitamente utilizando essa arquitetura impossível ao seu favor.

O conceito de Manifold Garden é simples e em poucos minutos é possível entender as leis básicas que regem o seu mundo. Ao longo das fases, novas mecânicas que obedecem a princípios semelhantes vão sendo adicionadas, criando camadas de complexidade cada vez maiores, mas, mesmo assim, de forma muito orgânica.

Basicamente, o game parte do princípio que existem várias gravidades atuando ao mesmo tempo e o jogador pode alternar entre elas a qualquer momento. O outro ponto central de Manifold Garden é que objetos de um determinado plano podem ser movidos enquanto estão naquele eixo, mas são estáticos quando a orientação é alterada.

Duas portas, cada uma em uma gravidade

Parece complicado né!?

E realmente era quando William começou a desenvolver o jogo. E a solução para esse problema veio através de uma forma muito simples: utilizar cores diferentes para cada gravidade.

Existe uma mira presente na tela o tempo inteiro e quando essa é direcionada a uma superfície ela revela que cada plano tem uma cor específica, que representa a cor da gravidade daquele eixo. Digamos que quando o cursor é apontado para a parede esquerda ele fique verde, mas ao direcioná-lo para a parede do fundo a cor seja roxa, isso significa que para acessar, por exemplo, um botão verde que abre uma porta é preciso inverter a gravidade até que o chão seja a parede verde.

Rotacionar paredes para acessar botões e portas de cores diferentes é o tipo de puzzle básico de Manifold Garden, mas tudo deriva do mesmo conceito a partir daí.

O próximo quebra-cabeça introdutório, por exemplo, envolve blocos que podem ser posicionados em placas de pressão para assim como no caso do botão abrir portas.

Um bloco de pressão mantendo uma porta aberta

Vamos imaginar que um bloco amarelo deva ser colocado em um botão de pressão amarelo para conceder acesso a uma nova sala, mas esse bloco está do outro lado de uma plataforma que só pode ser acessado através de um caminho que obedece ao plano azul, por exemplo.

Como mencionado anteriormente, objetos de um eixo são móveis apenas dentro dele, ou seja, blocos de uma cor específica podem ser movimentados apenas dentro daquela cor (gravidade) e perdem a mobilidade assim que esse eixo é alterado.

Então, agora temos dois problemas: primeiro é preciso achar um caminho para chegar até essa outra extremidade, talvez rotacionando as diversas gravidades, transformando paredes em chão e teto em paredes, e assim por diante, até conseguir acessar o plano amarelo, onde o bloco ficará disponível e levá-lo até a placa de pressão.

Contudo, aí temos o segundo problema: como o bloco não pode ser movimentado em gravidades de cores diferentes será necessário posicioná-los em lugares estratégicos para que assim ao mudar a física do mundo ele simplesmente caia, como a maçã de Newton, justamente no painel amarelo que funciona como chave para o próximo conjunto de puzzles.

Os blocos também têm setas que indicam a que gravidade eles pertencem

Dando uma volta ao ar livre

E se os quebra-cabeças internos são relativamente contidos, é ao conceder ao jogador acesso a uma área externa que o jogo literalmente cresce em escopo, apresentando estruturas colossais que se repetem em padrões infinitos, onde é possível enxergar toda a inspiração que as pinturas surrealistas de Escher exerceram sobre Manifold Garden.

E se na parte interna eu já estava dominando o que o jogo exigia de mim, do lado de fora senti que havia voltado quase à estaca zero. Tudo parecia gigantesco demais, diferente demais. Mas não era nada disso, eu precisava apenas aprender as novas regras, que eram em princípio apenas variações do que já havia assimilado até então. Eu só precisava reaprender a aprender (lição poderosa).

O primeiro desafio consistia em acessar uma plataforma do outro lado de uma vala que estava acima de mim, só que por conta desse abismo entre o lugar que eu estava e o lugar que precisava chegar, eu não tinha nenhuma estrutura para onde apontar minha mira e rotacionar meu mundo. Como eu poderia alcançar o outro lado então?

E enquanto perambulava pelas passarelas tentando enxergar um pedacinho de parede para onde apontar minha mira gravitacional o pior aconteceu: eu cai.

Cair é uma mecânica importantíssima em Manifold Garden

Dessa forma descobri que não existe morte em Manifold Garden, e ao cair de uma estrutura aberta é possível continuar em queda livre indefinidamente. Após essa primeira queda eu esperei que o jogo retornasse ao último checkpoint, mas simplesmente eu continuava caindo. Observei então que eu tinha certo controle de queda e podia mover e direcionar meu personagem para pousar em um local específico.

E foi nessa primeira área externa que percebi o quão genial era o conceito de “cair para cima”.

Para acessar a parte de cima daquela plataforma do outro lado do abismo na verdade eu precisava controlar minha queda para chegar à repetição da estrutura logo abaixo dela mesmo. Simples e incrível.

Dando vida aos Jardins Múltiplos

Manifold Garden não tem uma história narrada e inicialmente o objetivo é apenas avançar e resolver os próximos problemas propostos, mas esse mundo é suficientemente intrigante em seu minimalismo para te prender a ele.

Manifold Garden é lindo dentro da sua proposta minimalista

Existe uma corrupção na forma de um resíduo negro, como se fossem manchas de petróleo, cobrindo estruturas e aprisionando blocos translúcidos, chamados de Blocos de Deus. Ao ativar torres nestas áreas externas é possível redirecionar lasers que removem essa gelatina negra e libertar esse bloco especial de sua prisão.

Após posicioná-lo em um local apropriado o universo se expande e se contrai em uma espécie de Big Bang de destruição e reconstrução, e assim um jardim de blocos e pássaros geométricos nasce no seu lugar, criando vida a partir dos blocos que antes estavam corrompidos.

Área terminada, vamos para a próxima.

Esse processo se repete pelas sete áreas do jogo, adicionando mecânicas que envolvem redirecionamento de correntes de água para ativação de mecanismos, puzzles similares a um Tetris gigantesco, dispositivos que permitem a alteração de cores dos blocos para burlar a gravidade e muito mais. Cada fase acrescenta um conceito importante que será utilizado na próxima.

Redirecionando água para mover maquinário

Vale a pena?

Manifold Garden é ao mesmo tempo relaxante e desafiador, como todo bom puzzle game.

Normalmente, as soluções são simples quando você aplica as camadas de conceitos apresentadas, mas nem sempre é fácil chegar a uma determinada linha de raciocínio e entender o que ele espera de você e é comum agarrar em algumas partes.

Mas assim como todo quebra-cabeças, quando você enxerga a solução é ao mesmo tempo satisfatório e engraçado: “Nossa, como eu não pensei nisso antes!? É tão óbvio… estava aqui na minha cara o tempo inteiro!”.

E esse sentimento de realização, por solucionar algo que subverte o próprio raciocínio lógico, é algo que eu não sentia desde a época em que joguei Portal 2 pela primeira vez e fiquei maravilhado.

Os gráficos de Manifold Garden são lindíssimos e casam bem com a proposta arquitetônica surrealista que ele apresenta. O uso das cores de forma simples e minimalista criaram uma identidade muito própria também. Tanto que ele é uma das obras finalistas do Beazley Designs of the Year de 2020 do Design Museum de Londres, sendo o único jogo a concorrer entre outras 74 obras de arte em uma das seis categorias da premiação. Os vencedores serão anunciados em 26 de novembro.

O “Big Bang” que acontece ao final de cada fase

Apesar de ter achado o título uma obra fantástica tenho duas ressalvas importantes a fazer.

Obviamente, depende da tolerância de cada um, mas quem tem sensibilidade a movimento pode achar difícil a quantidade de vezes em que é preciso girar o mundo e alterar a perspectiva dentro do jogo. Eu mesmo tive um pouco de problemas no começo, mas a sensação passou rápido quando achei meu ritmo para alternância entre paralelos.

Outro ponto que pode incomodar alguns é a falta de um mapa, ou um direcionamento mais tradicional, o que pode levar o jogador a andar em círculos em algumas áreas por um tempo. Devido, justamente, aos diversos giros de câmera e alternâncias entre dimensões em alguns momentos não visualizar uma plataforma em que é preciso pousar e liberar acesso a uma porta para o final da fase pode ser frustrante.

E mesmo após esses momentos, quando no final tudo dá certo o sentimento de eureka é inevitável, e esse tempo em que você passou amaldiçoando até a oitava geração da família Chyr se transformam em realização, que só um bom jogo de quebra-cabeças consegue transmitir.

E Manifold Garden não é só um bom quebra-cabeças, ele é um dos melhores.

Relatividade, 1953 de M.C. Escher, uma das grandes inspirações para Manifold Garden

A análise de Manifold Garden foi escrita com base em uma cópia de PlayStation 4 gentilmente cedida pela assessoria de imprensa do jogo.


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Papai Platina
(Pouco) conhecido como Willian. Marido, pai de três filhos maravilhosos, fã de Stephen King, filmes toscos e trophy hunter nas horas vagas. No Twitter como @papaiplatina e willianmarques na PSN.