Análise Night Book (PS4)

Night Book é um suspense interativo em FMV sobre uma tradutora grávida que ao ler um livro antigo invoca demônios ancestrais para sua casa.

Night Book Review

Eu cresci em uma cidade do interior pequena e tranquila, então tive todos os benefícios que uma infância livre poderia oferecer, brincando na rua até tarde da noite de pique-esconde, balança caixão, futebol de asfalto e muitas outras. E quando não estava na rua com meus amigos eu me afundava nos livros. Sem brincadeira, eu lia tudo que caísse na minha mão.

Em um certo momento, depois de ler todos da Agatha Christie e da Coleção Vagalume, que existiam na Biblioteca Municipal da cidade, encontrei uns livros surrados no fundo da estante de um tal de Ian Livingston e de outro camarada chamado Steve Jackson.

Eles eram diferentes daqueles que costumava ler porque no final das páginas existiam escolhas que poderiam ser feitas: “Se você quer abrir o baú vá para a página 34” ou “Se quiser investigar a casa abandonada pule para a página 72”. E dessa forma fui introduzido a uma maravilha chamada livro-jogo.

Livro Night Book

Se os livros continham universos que já faziam a minha mente viajar para vinte mil léguas submarinas ou embarcar com um assassino em uma viagem luxuosa no expresso do oriente, os livros-jogos pareciam ter possibilidades ainda maiores. A impressão é que elas eram infinitas. O livro não acabava na última página porque eu poderia recomeçar a leitura fazendo novas escolhas e encontrar outros finais. Eu achava isso impressionante.

E quando os videogames, antes experiências lineares e com objetivos diretos, passaram a incorporar o conceito de de múltiplas escolhas que alterariam os rumos de um jogo, eu não conseguia não pensar que talvez os desenvolvedores desses games tiveram experiências parecidas com a minha e influenciados a, de certa forma, criarem as suas versões eletrônicas das obras de Livingston, Jackson e muitos outros.

O jogador não participaria mais da história apenas, agora ele tinha em suas mãos o poder da escolha. Algumas mais limitadas, outras complexas, mas agora existiam opções.

E vendo as coisas por essa perspectiva, Night Book da Good Gate Media e Wales Interactive é um título cujo maior trunfo para o jogador é justamente esse poder de decisão.

Pearce

No game você controla Loralyn, uma tradutora que trabalha como intérprete de francês/inglês para uma empresa online chamada Glossa Lingua conectando pessoas que precisam se comunicar, mas não dominam um dos idiomas. Todo o contato com os empregadores e usuários é feito através de chamadas de vídeo, em um aplicativo parecido com o Zoom ou Google Meet.

Loralyn está grávida do primeiro filho e o marido está do outro lado do mundo gerenciando a construção de um resort paradisíaco. A sua única companhia em casa é o pai, que em um primeiro momento parece sofrer de algum distúrbio mental e se recusa a sair de seu quarto alegando fazer isso para segurança da própria filha.

Em uma dessas chamadas de vídeo do trabalho é solicitado que Loralyn traduza trechos de um livro escrito em Kannar, uma língua antiga que ela conhece por conta do pai. E é aí que o pesadelo começa. Assim como em Evil Dead, ou em qualquer mídia que tenha uma livro escrito em uma língua desconhecida, ler suas palavras nunca é um caminho promissor, e com isso Loralyn liberta entidades demoníacas que irão atrás dela e de quem ela ama.

Espíritos Ancestrais Night Book

Não vou entrar em detalhes por conta de spoilers. Mesmo que a condução da história fique por conta do jogador e que cada um vivenciará uma narrativa diferente, existem pontos centrais envolvendo a relação de Loralyn com o pai, o projeto do marido e as pessoas que ela tem contato no trabalho que estragariam a experiência se as revelasse aqui.

Por se tratar de um filme interativo, ou FMV (full motion video), as ações de gameplay em Night Book se resumem a escolher opções apresentadas na tela. Algumas levam a mudanças de atitude dos personagens, novas cenas ou novos diálogos, enquanto o conjunto de escolhas realmente importantes vai direcionar para um de seus 15 finais possíveis (descobri 11). Essas decisões são acompanhadas por um símbolo de efeito borboleta na tela, o que demonstra que aquele foi um dos momentos chave do história.

Posso dizer que Night Book é um produto do seu tempo. O game foi todo filmado e produzido de forma remota durante a pandemia do COVID-19, com os atores sendo responsáveis por suas próprias filmagens, iluminação, maquiagem e continuidade. Isso influenciou na forma com que o título foi editado, e é possível notar como o roteiro precisou contornar direções que só poderiam acontecer se os atores contracenassem em um mesmo ambiente.

Quarto do papai

Por exemplo, o pai de Loralyn está no quarto de hóspedes do apartamento com ela, mas os atores nunca estão ou entram em cômodos em que o outro transitou, justamente porque cada um estava filmando de sua própria casa, na verdade. Para termos a ilusão que tudo acontece no mesmo lugar, um sistema de segurança filma todos os ambientes, enquanto os dois conversam atrás de portas fechadas ou por telefone. A sua visão como jogador inclusive é a da webcam do computador dela ou através do sistema de CCTV.

Já Pearce, o marido de Loralyn, está em seu escritório na ilha onde o resort será construído. A gerente da Glossa Lingua precisou ficar na empresa até mais tarde e fala com você de lá. E as pessoas que usam o serviço de tradução simultânea, essas sim tem a desculpa perfeita para estar em suas próprias casas, usam as ligações de vídeo para se conectar.

Montar essa estrutura com certeza minimizou custos de produção, foi bastante inventiva, mas também sacrificou o roteiro. Vários momentos me pareceram corridos ou muito rasos em virtude dessas decisões, e às vezes foi difícil me importar com os personagens já que a conexão entre eles não tem tempo para se tornar crível.

O Livro Maldito

Outro ponto importante quando o assunto é FMV é a atuação dos atores. Nesse caso, dois caminhos usualmente são seguidos: os jogos podem não se levar a sério, como Night Trap, e terem atuações canastronas de propósito, ou irem pelo caminho oposto, mais dramático, como Late Shift da própria Wales Interactive, o que no caso exige atuações melhores que segurem a tensão. Night Book joga no segundo time, mas exceto pela atriz principal, que foi incrível, e por dois personagens da ramificação que leva à negociação do livro, os outros atores fazem um trabalho fraco.

A primeira jogada de Night Book leva um pouco mais de 1 hora. É um tempo bem curto, mas que aposta na curiosidade do jogador em querer ver como outras decisões vão afetar o destino dos personagens e fazer múltiplas jogadas. O que com certeza não vai ser o caso de todos.

A boa notícia é que para quem quiser tentar os outros finais é possível pular as cenas que já assistiu anteriormente e fazer escolhas diferentes, encontrando assim novas ramificações que podem levar a finais distintos. Isso minimiza a repetição e é ideal para quem gosta de se aventurar na caça de troféus ou achievements, como eu.

Decisões Night Book

Contudo, o meu sentimento final com Night Book é um pouco conflitante. Gostei do jogo, admiro o produto que conseguiram entregar, a engenhosidade com que foi construído, o fato dele estar todo legendado em português do Brasil e com um preço bom de lançamento (64,50 R$ na PSN), mas esperava um pouco mais da história.

E mesmo que alguns finais sejam melhores que outros, eles parecem previsíveis e acelerados. Talvez se ele fosse um pouco mais longo, algumas ideias poderiam ter sido melhor desenvolvidas, a relação dos personagens trabalhada de forma mais profunda, a minha impressão teria sido mais positiva e a recomendação seria fácil.

De qualquer forma, apresentei nesse texto os pontos positivos e os negativos do jogo, contudo, a decisão de dar uma chance ou não a ele fica com você.

Afinal, a escolha é sua.

Jacqueline Night Book

A análise de Night Book foi escrita com base em uma cópia de PlayStation 4 gentilmente cedida pela assessoria de imprensa do game. Também disponível para PC, PS5, Xbox One, Xbox Series, Nintendo Switch e dispositivos iOS.

Papai Platina
(Pouco) conhecido como Willian. Marido, pai de três filhos maravilhosos, fã de Stephen King, filmes toscos e trophy hunter nas horas vagas. No Twitter como @papaiplatina e willianmarques na PSN.