Análise Death Stranding (PlayStation 4)

Death Stranding é um jogo sobre conexão entre pessoas e comunidades em uma América distópica projetada pelo designer veterano Hideo Kojima.

Death Stranding, o primeiro trabalho de Hideo Kojima após deixar a Konami, desenvolvedora lendária onde trabalhou por quase 30 anos, foi publicado envolto em controvérsia. Enquanto algumas avaliações de quem o jogou antecipadamente o consideravam uma obra prima, outras diziam que a obra não passava algo que “exige mais esforço [do jogador] do que tem direito”; e enquanto uma coleção de notas baixas geram certeza de que pouca gente vai jogar, análises tão díspares fizeram nascer a dúvida: Kojima perdeu a mão? Vem comigo que eu te conto.

E.C.T.

Death Stranding foi sendo revelado para o público por meio de uma série de trailers misteriosos com atores (e um diretor) renomados. Norman Reedus, Guillermo del Toro e Mads Mikkelsen eram o carro chefe atraindo atenção e curiosidade para um conceito que aos poucos foi se revelando. Uma série de explosões chamadas Death Stranding trouxeram monstros grotescos e sombras de pessoas mortas ao nosso mundo, os BTs, espectros que podem consumir quem estiver vivo e por isso, pessoas mortas precisam ser cremadas ao morrer ou produzirão uma nova explosão (voidout) que irá gerar mais monstros.

Uma premissa interessante levada às últimas consequências por Hideo Kojima de maneira no mínimo exagerada e com um desdobramento inesperado, para não dizer forçado. As pessoas e comunidades se isolaram em bunkers subterrâneos e têm medo a interagir entre si. O conhecimento humano ficou perdido em locais isolados e corre o risco de desaparecer já que a sociedade como a conhecemos já não existe mais e as únicas pessoas que podem reconstruir essa América distópica são entregadores de encomendas ligados a companhias de frete. Sim, você leu certo. Essa primeira dissonância entre a apresentação magnífica e o que fazemos de fato (tanto simbolicamente como mecanicamente) é o primeiro paradoxo – e talvez o principal – dentro do jogo.

Kojima, meu gato, usando tapa-olho
Kojima durante a divulgação de Metal Gear Solid V

Estranheza à parte, há sim uma mensagem forte e uma dimensão muito prática nessa decisão de jogabilidade que aborda a necessidade do trabalho braçal daqueles que constroem e reconstroem qualquer coisa (um tema certamente muito caro aos japoneses) e assim, Sam, o protagonista vivido por Norman Reedus, é convocado a reconectar a América ligando cidades de Leste a Oeste, uma encomenda por vez, a uma rede Chiral (não pergunte) para que voltem a fazer parte do governo das Cidades Unidas da América (UCA). Se essa tarefa não parece ser atrativa o suficiente para convencer o protagonista que escolheu não mais se relacionar com pessoas a sair cruzando rios e vales, também há o fato de que a mãe dele é a atual presidente da UCA e que a irmã dele, Amelie, está sendo feita de refém por terroristas capazes de provocar voidouts. Sam precisa fazer o trabalho porque além da relação pessoal, ele possui uma condição conhecida como DOOMs que o permite sentir a presença dos BTs.

Frete

O início de uma missão em Death Stranding se parece muito com Metal Gear Solid V: The Phantom Pain. Temos uma lista de ordens de entregas para fazer e podemos fabricar equipamentos que irão auxiliar no trajeto mas uma vez escolhida a ordem, recebemos os pacotes que iremos transportar do ponto A ao ponto B passando por lugares que não parecem ter qualquer similaridade com o território real dos Estados Unidos, em termos de paisagem ou na escala que comprime uma porção continental para ser possível atravessá-la a pé.

Mesmo assim, caminhar é o aspecto mais interessante do jogo. Cada jornada é um quebra-cabeças em que é necessário planejar qual caminho tomar e qual evitar, quais equipamentos poderão ser necessários e se vale a pena abraçar outras tarefas, como coletar material encontrado no caminho para ajudar na construção de uma ponte iniciada por outro jogador, por exemplo. Cada trajeto novo traz junto uma paisagem única com terreno e acidentes geológicos próprios onde o desapego é posto à prova pois nem tudo pode ser carregado da mesma maneira por todos os tipos de terreno que impressionam pela variedade e beleza. Utilizar os equipamentos durante a travessia torna algo simples como cruzar um rio em uma pequena vitória conforme avançamos.

Kojima, o meu gato, olhando para a câmera durante a foto
Kojima quebrando a quarta parede.

Uma momento memorável aconteceu quando fui visitar o Junk Dealer pela primeira vez. Depois das paisagens verdes, com muita grama e rios, segui rumo a oeste por uma espécie de deserto vermelho incrustado de rochas, como se o leito de um antigo oceano estivesse sendo levado pelo vento, revelando aos poucos a fundação da crosta. Entre o centro de distribuição e essa área desolada havia um acampamento de MULEs (a facção que rouba cargas porque sim) e como eu estava com a minha moto/triciclo, achei por bem acelerar em direção ao objetivo até descobrir uma fenda cortando o chão, larga o suficiente para que eu não conseguisse pular e estreita o suficiente para que eu não tivesse enxergado antes de ter caído no fundo dela. Após lutar com todos os inimigos pela minha carga, consegui sair usando as escadas que eu tinha comigo como pontes em lugares estratégicos e pilotando com muito cuidado, consegui desfazer o que parecia um desastre para descobrir que as rochas no caminho que eu tracei indo e voltando do Junk Dealer foram substituídas pela minha trilha que ficou marcada permanentemente.

Esse é exatamente o tipo de profundidade de interação com o mundo que eu espero de um jogo do Kojima. Morros, florestas, rios viram caminhos possíveis ou obstáculos a depender do que estivermos carregando e do que os outros jogadores fizerem e deixarem pelo caminho.

Kojima, o meu gato, usando gravata borboleta
Kojima, na E3 em que Death Stranding foi anunciado.

O componente online, similar ao que já foi feito por Hidetaka Miyazaki em Dark Souls, é indireto mas cumpre bem seu propósito. Tudo o que for deixado no cenário pode ser usado pelos demais jogadores assim como podemos usar aquilo que for deixado por eles: escadas, rapel, carregador de bateria, tudo (tem muita coisa legal que pode ser construída como abrigos e até estações de tirolesa). Também podemos sinalizar o caminho, indicando direção, alertando sobre o relevo e sobre a presença dos BTs, mas para ter acesso a toda essa informação, Sam precisa conectar a região em que está à rede Chiral o que torna as viagens de ida por territórios novos sempre mais desafiadoras do que o retorno, quando a nova cidade está conectada à rede. Essa é a base de Death Stranding mas o jogo não se resume a isso, infelizmente, pois a travessia, ainda que por vezes seja lenta e penosa, e a descoberta são a melhor parte da experiência.

Death by Love

Death Stranding integra vários meios para contar uma história interessante e relevante recheada de elementos e conceitos originais que dão suporte ao estado atual da América. A cutscene de abertura do jogo é impecável tanto no fotorrealismo alcançado pela Decima Engine, também usada em Horizon Zero Dawn, como na direção dos atores e na tensão que a cena gera. No entanto essa direção não mantém a qualidade ao longo da história, com muitas cenas se prestando apenas à exposição longa dos eventos desse universo como aquela em que vimos Deadman (personagem com a aparência do Guillermo del Toro) explicar para o Sam como funcionam os BBs. Assim como essa, outras cenas que parecem mostrar um diálogo, na verdade são monólogos em que um dos personagens expõe alguma história ou conceito para o protagonista.

Não me entenda mal, quase todos os personagens secundários são carismáticos e agradáveis de assistir e desse grupo, as aparições do Mads Mikkelsen são hipnotizantes e me fizeram ficar grudado na TV querendo saber mais e mais sobre seu personagem misterioso chamado Cliff. Mas enquanto “Hannibal Lecter” captura a atenção em toda cena, outros personagens despejam uma quantidade tão grande de informações acerca do mundo e de si próprios que por mais que estejam ligadas ao fenômeno Death Stranding de alguma maneira, estão assentadas em conceitos ou constroem metáforas tão intangíveis que passam direto por cima da nossa cabeça, sem qualquer vínculo prático com a tarefa do Sam neste mundo que é entregar encomendas.

Essa desconexão entre a história sendo contada, o mundo onde ela se passa e o que de fato fazemos no jogo é o Calcanhar de Aquiles da experiência e me parece estranho que Hideo Kojima não tenha se dado conta desse abismo, sendo tão apegado filmes e cinema. O que mais pesou quando eu jogava foi que entre todos os personagens em torno do Sam, não houve nada que fizesse me importar com a Amelie, sua irmã, exceto pelo que é falado nas cenas e a única hora em que eu senti urgência em prosseguir com a missão porque um dos amigos estava em perigo, não foi com a personagem da Lindsay Wagner.

Quanto mais eu avançava na história, a exposição se tornava mais cansativa e eu tinha menos paciência para ouvir o que os hologramas tinham para falar após cada entrega, ler os inúmeros e-mails enviados pelos chefes dos centros de distribuição ou das entrevistas em texto que se acumulavam no meu menu. Eu queria apenas andar pelas magníficas paisagens do jogo, vencer os obstáculos naturais e trocar algumas frases com o BB.

Kojima, o meu gato, brincando com seu peixe de pelucia
Kojima demonstra uma luta contra os BTs

Baby Please Don’t Go

Falando no Bebê Joinha, ele é facilmente um dos sidekicks mais divertidos dos jogos mesmo sem falar muita coisa porque ele reage a muito do que fazemos no mundo com “likes”, sorrisos e bolhas de dentro do seu jarro. A principal função dele é ser um detector de BTs em conjunto com o Odradek, aquele catavento que carregamos no ombro, uma mecânica maravilhosa.

Ao longo do mapa, algumas áreas são afetadas pelo fenômeno Timefall, uma chuva temporal que envelhece tudo o que toca, pessoas, equipamentos, estruturas e nessas regiões é certo que haverá a presença dos BTs (Beached Things). Os espectros nessas áreas podem capturar Sam para uma batalha com um BT que é até bem fácil e pode valer mais a pena enfrentá-lo do que avançar de maneira cautelosa pelo terreno. Cabe ao jogador decidir e por mais que seja cansativo atravessar um campo de BTs quando estamos mais interessados em chegar logo ao destino das entregas do que em enfrentar monstros, a junção do Odradek com o BB consegue replicar um recurso bastante comum em vários jogos mas dessa vez usando gestos mecânicos para indicar a proximidade das ameaças de uma maneira nova. É uma pena que a presença dos BTs fique restrita a determinados locais e que não seja possível eliminá-los definitivamente após vencer o chefe da área que surge quando somos capturados pelas sombras mortas – eles sempre retornam após algum tempo ao mesmo lugar.

Com o avançar da história, vamos descobrindo a relevância do BB, e a relação dele com o Sam e com outros personagens se torna um dos arcos narrativos mais legais criados para o jogo, talvez o mais legal.

Kojima, meu gatinho.
Kojima era o BB o tempo todo?

Tente Outra Vez

Death Stranding é divisivo. A apresentação é impressionante e o design de tudo no jogo é incrível. Cada cena tem potencial para virar um papel de parede e a inserção das músicas nos momentos corretos elevam a experiência de um jeito que não é obra do acaso, a mão do diretor/designer/produtor/roteirista/milionário/playboy/filantropo Hideo Kojima está em tudo o que se olha. É tão bom que eu queria poder materializar na minha frente um jogo do Senhor dos Anéis só para andar com o Frodo pela Terra-média do jeito que eu andei com o Sam por mais de 60 horas, ou que eu pudesse ir de Leste a Oeste da América em uma longa caminhada única em vez de ter que me conectar com hologramas a cada entrega (não com jogadores de verdade, como a metáfora da conexão sugere).

Mas esse é um só lado da moeda e junto com a novidade está uma quantidade massiva de exposição e de conceitos (chiralidade, BTs, praias, ligação umbilical, ka, ha, EE) que deveria servir para explicar o mundo e seus detalhes mas funciona mais como uma longa mensagem de áudio no celular da qual eu queria poder eliminar os excessos e focar apenas no essencial, mas não posso porque talvez perca algo importante se passar adiante. E essa exposição é feita da pior maneira possível, às vezes enfileirando personagens para que cada um tenha sua vez de falar em frente ao Sam durante bastante tempo, muitas vezes sem que ele sequer responda.

Kojima conseguiu despir Death Stranding de quase todas as ações mais populares nos videogames para enfatizar um dos movimentos mais básicos em qualquer jogo e transformá-lo em algo interessante, divertido, relaxante e até tenso em certos momentos mas infelizmente não foi capaz de aplicar aos demais elementos a infalível verdade do universo: menos é mais.

Fico na esperança de que meu gato entenda que agora ele se chama Fumito Ueda.

Diego Matias
Além dos reviews, escrevo no Riffs & Solos e faço vídeos com meu irmão no canal SuperContra. Passa lá!